segunda-feira, 22 de julho de 2013

Ponto de Inflexão

Na teoria do cálculo, o ponto de inflexão é um lugar da curva onde o sinal da curvatura sofre uma inversão. Em outras palavras, se a curva estava indo para a esquerda, o ponto de inflexão é onde ela muda para a direita. Um ponto de inflexão significa também uma mudança de direção, em vários aspectos.

Nem sempre as mudanças são perceptíveis à primeira vista. Principalmente as mudanças pessoais. Podemos passar dias, anos em algum processo de mudança e afinal não conseguirmos distinguir claramente o ponto de inflexão. Onde o antes se separou do depois.

Esses dias fui atingido por uma virose, o que me fez ficar de cama e assistir pela terceira ou quarta vez o filme "A Lista de Schinlder", que considero o melhor de todos os tempos. Logo eu, fã dos filmes de ficção científica e suspense, fui eleger um drama como o melhor filme.

Para quem não conhece o filme, ele conta a história de Oskar Schindler, um empresário alemão dos Sudetos (na época, Áustria, hoje República Tcheca), que consegue com seus esforços livrar 1200 judeus poloneses dos campos de extermínio nazistas durante a Segunda Guerra. Quando a história foi oferecida a Spielberg, em 1982, ele a achou tão iverossímil que levou 10 anos para decidir filmá-la. Quando vi o filme pela primeira vez, eu também questionei sua veracidade, pois Oskar me pareceu santo demais. Nesta nova reprise, tendo tempo suficiente, resolvi separar os fatos da ficção.

O primeiro fato é que Schindler se aproveitou do trabalho escravo. Em 1939 a Polônia foi invadida pela Alemanha, e os judeus residentes nesse país foram obrigados a se mudar para os guetos. Guetos eram como pequenos bairros murados no centro da cidade onde a população judaica era concentrada e controlada pela SS, a polícia nazista. Guetos foram um passo anterior aos campos de concentração. Os judeus perderam sua cidadania, seu direito de ir e vir, suas posses, e apenas uma parte deles, cujo trabalho foi considerado essencial, podia sair do gueto para trabalhar. Mas ainda assim, sem receber salário. Quem quisesse contratar um judeu deveria pagar o salário para a SS, 7 marcos por dia. A SS em troca fornecia os suprimentos para o gueto, sempre insuficientes. Pouco antes do fechamento do gueto de Krakovia, a média de calorias diárias recebida por um judeu não chegava a 200. Um adulto saudável necessita de 2.000. Se não recebiam salários, por que os judeus aceitavam trabalhar? Por dois motivos principais: primeiro corriam menos riscos de serem transferidos para um campo de concentração, e deste para um de extermínio; segundo, saindo do gueto, podiam trocar mercadorias no mercado negro e fazer outros tipos de negócios.

Schindler foi para a Krakovia, Polônia, por volta de 1940 porque viu uma oportunidade. Muitos judeus conseguiram levar para o gueto algum dinheiro, ou bens como ouro e diamante que não podiam utilizar. Schindler propôs que lhe entregassem este dinheiro para a construção de sua fábrica, e em troca, empregaria judeus e lhes daria algum pagamento no mercado negro. Ou seja, os judeus entraram com o dinheiro, com o trabalho, e Schindler... seria o dono legal de tudo. Uma posição muito cômoda. Assim foi até 13 de março de 1943, quando o gueto foi finalmente liquidado: dos 15 mil residentes, 2 mil foram mortos nas próprias casas e nas ruas, 5 mil foram para o extermínio em Auschwitz, e 8 mil para o campo de trabalhos forçados de Plaszow.

É nesse momento que vem à tona o segundo fato real sobre Schindler. Já rico e com a fábrica próspera, e ele poderia simplesmente ter contratado trabalhadores poloneses a 10 marcos por dia (3 a mais do que pagava por um judeu), e continuado sua vida. Mas em vez disso ele foi atrás dos seus judeus em Plaszow. Gastou parte de sua fortuna subornando o comandante daquele campo, Amon Goth para que este permitisse que seus trabalhadores judeus continuassem lhe prestando serviços. Assim, todos os dias, os judeus caminhavam escoltados de Plaszow até sua fábrica, retornando ao campo à noite.

A vida em um campo de concentração era exponencialmente pior que a de um gueto. O campo é uma prisão propriamente dita. Periodicamente os judeus eram avaliados de acordo com suas condições de saúde, e, se não fossem considerados aptos ao trabalho, eram enviados para algum campo de extermínio. Por mais de um ano, Schindler conseguiu manter seus judeus à salvo em Plaszow.

Mas as coisas mudaram de novo. Era o final de 1944, e as tropas soviéticas já avançavam sobre os nazistas. Apressadamente, os campos de concentração foram sendo fechados, e os judeus remanescentes enviados para a morte. Quem estava em Plaszow seria enviado para Auschwitz, o campo de extermínio mais próximo.

Tem lugar o terceiro fato sobre Schindler, talvez o mais surpreendente. Novamente ele poderia esquecer os judeus e contratar os poloneses. Mas em vez disso, ele usa de toda sua fortuna, suborno e influência, arriscando sua própria cabeça para levar 1.200 judeus para Zwittau, sua cidade natal na Austria, onde ele reconstruiria sua fábrica e um campo, Brinnlitz, para abriga-los. Estes 1.200 são os judeus da famosa lista. Mesmo que por lei fosse obrigado a aceitar a vigilância e os soldados da SS, ele se torna na prática o comandante do campo, podendo garantir a segurança dos judeus até o final da guerra.

Estes são os fatos mínimos acerca de Schindler. Era fato que iniciou se aproveitando dos judeus. Mas também foi fato que entregou sua fortuna e arriscou sua cabeça para livrá-los no final. O resto é poesia e dramatização.

Em algum momento Schindler passou pelo ponto de inflexão. Talvez tenha passado sem perceber, talvez tenha acordado na manhã do dia 14 de março de 1943 e se dado conta de que precisava fazer algo na vida, além de acumular riquezas. Spielberg retrata este ponto de inflexão naquela que é uma das cenas mais tristes do cinema, e ficou conhecida como a cena da garota da capa vermelha.


O filme inteiro é rodado em preto e branco, com exceção dessa menina. Schindler a observa de longe durante a liquidação do gueto, tentando fugir do caos. Isso é poesia, provavelmente Schindler nunca viu essa menina. Mas ela é real, é apenas uma das milhões de crianças de capa vermelha, azul, verde, cinza, que foram assassinadas. O próprio Spielberg deu sua interpretação da cena:

"Todos sabiam sobre o Holocausto, e mesmo assim não fizeram nada. Nós não enviamos qualquer uma de nossas forças para impedir a marcha em direção a morte, a inexorável marcha em direção a morte. Foi um enorme derramamento de sangue, primariamente na cor vermelha no radar de todos, porém ninguém fez nada a respeito. E é por isso que eu quis trazer a cor vermelha."

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